quarta-feira, dezembro 28, 2005

Caranguejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P’ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p’ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p’lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor-
P’lo menos era o sossego completo... História! era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P’ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...


De que me vale sair, se me constipo logo?
E que posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo-
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
P’ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me p’rá enfermaria!-
Isto é, p’ra um quarto particular que o meu Pai pagará.


Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo moderno e tranquilo;

Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...


Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.



Mário de Sá Carneiro.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Pura Arte

"Pessoalmente não posso viver sem a minha arte. Mas nunca pus a arte acima de tudo.
A arte não é aos meus olhos um regozijo solitário. É um meio de comover um maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns.
Obriga, pois, o artista a não isolar-se; submete-o à verdade mais humilde e mais universal. E aquele que, muitas vezes, escolheu o seu destino de artista porque se sentia diferente, bem depressa aprende que não conseguirá alimentar a sua arte, e a sua diferença, senão confessando a sua semelhança com todos.
Por isso é que os verdadeiros artistas nada desprezam; obrigam-se a compreender em vez de julgar."

Albert Camus

O primeiro encontro



Olhas-me em dourado.
Acompanho o teu sorriso,
e recordo aquela noite
onde tudo começou a dois.

E quis bailar contigo.
Ser um pouco tua,
nessa noite.
E fui, naquela foto.

Não te toquei
mas estive contigo.
Senti o teu olhar,
a tua presença, o teu desejo.

A tua voz soou-me bem,
o teu olhar tocou-me.
E como uma alma conhecida,
quis olhar-te sempre.

10 Nov 2004

Acordar


Acordar de manhã cedo e sentir o corpo a espreguiçar de prazer. Está uma manhã fresca de um dia quente. Lá fora tudo é verde da folhagem que esconde o magnífico rio de águas imaculadas que reflectem a luz do Sol quente num azul celeste que se confunde com verde límpido da vida do rio.
©Stephanie Pui-Mun Law, 1998-2006
Sair da cama, sentir o corpo no chão, cada músculo a fazer o primeiro movimento da manhã, nascer com cada vibração e lentamente respirar o perfume que vem de fora, do rio, do verde. Com passos leves e confiantes abrir a janela e deixar que a luz do Sol reflectida pela água nos ofereça os brilhantes que tem, deixar que enfeite cada parede de brilhos vivos que não param, tocam a nossa pele, aquecem-na, beijam-na com carícia enchendo-a de magia. Abrir as portadas e sentir em pleno a vida, o azul do rio a chamar, cheirar o verde das plantas, ouvir a vida cantar em cada galho que baloiça com o ar, em cada chilrear dos pássaros que voam por entre a folhagem.
Descer e descalça a sentir as folhas no chão, chegar à beira do rio e tocar na água, doce e tranquila, ver as pequenas ondas que se propagam com cada toque que lhe dão mais vida. Aproximar-me, despir-me, sentir a leveza do seu toque e lentamente deixar-me fundir a ela, tornar-me a sua vida, ser o seu azul, perder-me no seu verde... mergulhar no seu fresco e sentir o seu calor em cada criatura que a compõe. Sentir-me água como ela, ser prisioneira de um desejo, recusá-lo lutando contra ele num revolto incessante. Aceitar, por fim, o meu destino, sentir o equilíbrio das águas e percorrer o azul sem fim.


2003

Que ideia esta?

Que ideia esta de nos comunicarmos via net.
Acabaram-se as cartas, os envelopes e a cola na lingua, o cheiro do papel, o cuidado na sua escolha, o requinte do aroma que cada um escolhe para os mais queridos!
Já não vemos a caligrafia (que sempre foi uma arte) de cada um, e agora confiamos nas letras escritas vindas de um endereço electrónico.
Tudo mecanizado e tenta-se personalizar com nomes e cores. Parece que na Era do poupar e da má gestão do tempo, é assim que nos safamos.
Um bem haja a todos =)
25 Setembro 2005

Vejo o que o céu me revela


©Stephanie Pui-Mun Law, 1998-2006

Vejo o que o céu me revela, o seu ar que respiro, o seu espaço que ele me concede. Ele diz-me de que tamanho sou e a idade que tenho. As suas estrelas dizem-me que nada mais importa se ele não existir. E são felizes porque as abraça e não as deixa cair.
Fecho os olhos e sinto a brisa que me toca. É fria e fresca. Traz-me a sensação de plenitude, dá-me forças para enfrentar o amanhã, traz-me os aromas da noite. Sinto o cheiro da terra que repousa, das árvores que respiram, dos prédios que emanam o calor das pessoas que descansam, e um silêncio distante perturbado pelos sons da cidade, pelos veículos ainda acordados, pelos cafés que adormecem, pelos amantes que se beijam nestas horas da noite.
Sinto de novo uma brisa mais forte e acordo.
Apercebo-me do cansaço que toma conta dos meus olhos, eles forçam um fechar que ainda não quero, mas cedo à vontade do corpo porque amanhã é um novo dia e não será dos melhores. E sei que preciso de todas as forças para enfrentá-lo.
Olho de novo o céu e despeço-me do seu ar. Sorriu levemente e as estrelas respondem com um brilho mais forte.
Despeço-me da cidade até um amanhã.
Vou agora sonhar o descanso do meu mundo e a vida que lá existe.

Adaf Aras
Primavera 2003